DESMISTIFICAR A "INVIABILIDADE" DO CAMINHO DE FERRO RURAL
Apresenta-se, a partir de agora, o trabalho "Subsídios para um novo Caminho de Ferro na Região do Alentejo", publicado em duas partes na "Transportes em Revista" em 2010, da autoria de Manuel Margarido Tão. Nessa época, mantinham-se ainda em plena actividade, os serviços de passageiros na Linha do Leste e Ramal de Cáceres, ainda que com um serviço quasi-esquelético, tornado deliberadamente repulsivo pela Tutela da operadora estatal, a qual, desde há longo tempo havia suprimido já as relações directas com Lisboa. No final de 2012, já com o actual governo anti-caminho de ferro, desapareciam, com a supressão dos serviços de passageiros Entroncamento-Badajoz (ininterruptos desde 1863), todo e quaisquer comboios de passageiros no Distrito de Portalegre (o Ramal de Cáceres perdera os seus últimos serviços meses antes). O trabalho demonstra, apoiando-se em estatísticas oficiais, o quão falaciosa é a argumentação da pretensa "inviabilidade" de serviços ferroviários devido a "factores demográficos regressivos", e desmascara a "vantagem" da substituição de serviços ferroviários com autocarros, salientando a incapacidade de os últimos se manterem por muito mais tempo, finda a exploração ferroviária. A liquidação dos serviços ferroviários rurais é apenas o fim do transporte público, a destruição do carácter inclusivo da mobilidade, e a demissão do Estado da promoção dos territórios e das suas comunidades. A segunda parte é fundamentalmente, o "benchmarking" de boas práticas do caminho de ferro rural Europeu, quer com envolvimento do Estado, quer com privados, associados a Comunidades locais. As tecnologias do material circulante regional moderno (deliberadamente ocultadas em Portugal), são igualmente contempladas na segunda parte do trabalho.
SUBSÍDIOS PARA UM NOVO CAMINHO DE FERRO
NA REGIÃO DO ALENTEJO (1A)
- Introdução
Volvida uma
vintena de anos sobre a data de 1 de Janeiro de 1990, quando foram encerradas
múltiplas linhas no Alentejo, ou se rarefizeram os serviços em outras, um
conjunto de novas perspectivas para o transporte ferroviário na Região parecem
emergir, com a materialização de realidades estruturantes, como o corredor de
Alta Velocidade Lisboa-Évora-Caia-Madrid, e o Aeroporto de Beja.
No primeiro dos
casos, uma linha férrea dupla em bitola “standard”
Europeia (1435mm), dedicada a passageiros, mas possuindo em parte do seu
traçado uma via extra de 1668mm, assignada aos movimentos regionais e
logísticos, terá dois pontos de acesso e egresso comuns à rede ferroviária
convencional existente: Évora-Norte e Caia, terminais novos, ligados
respectivamente às Linhas de Évora (Km 124) e Leste (Km 266). No segundo dos
casos, a proximidade da Linha do Alentejo ao novo Aeroporto de Beja,
designadamente na zona de S.Matias (Km 147), deixa antever, num terreno
completamente desimpedido e sem quaisquer obstáculos orográficos, a construção
de uma “variante de passagem”, permitindo o estabelecimento de um “interface”
de articulação funcional entre os modos aéreo e ferroviário, projectando o
“hinterland” do novo terminal para quadrantes tão distantes quanto a Área
Metropolitana de Lisboa, a Extremadura Espanhola ou os litorais do Alentejo e
Algarve.
É neste contexto
de desenvolvimento a médio prazo das acessibilidades no Alentejo que se afigura
imperioso abordar a problemática da valência colectora e distributiva da rede
ferroviária convencional, com particular incidência num conjunto de troços de
linha ainda existentes, todavia desactivados desde 1990. Até que ponto, o enquadramento
institucional, de “livre-acesso” à infra-estrutura ferroviária e contratualização
de serviços públicos de transporte, combinado com as novas realidades de um
terminal de Évora-Norte ou Caia, respectivamente a 35 e 50 minutos de
Lisboa-Oriente, projecta (ou não) para a actualidade, um papel renovado a
atribuir a linhas férreas presentemente desactivadas, mas potencialmente
capazes de transmitir os ganhos temporais da Alta Velocidade a um grupo de
cidades como Estremoz, Reguengos de Monsaraz ou Portalegre, colocando-os numa
isócrona inferior a 90 minutos, centrada na capital?
No presente
trabalho, propomo-nos analisar o potencial de parte da rede ferroviária
convencional do Alentejo à luz dos empreendimentos de infra-estruturas de
transporte de carácter estruturante, que serão implantadas na Região até ao fim
da presente década.
- O transporte ferroviário no Alentejo, de 1990 à actualidade.
A rede
ferroviária convencional na Região do Alentejo (Central e Meridional) consiste
fundamentalmente num grande corredor de via única, compreendido entre Pinhal
Novo (Km 16 a partir do Barreiro, ou Km 38 a partir de Lisboa-Oriente), e
Funcheira (Km 218), designado actualmente por “Linha do Alentejo” e
suplementando o itinerário Lisboa-Algarve, anteriormente conhecido como “Linha
do Sado”. A “Linha do Alentejo”, por seu turno, conta com várias ramificações,
das quais a mais importante é, sem dúvida, a Variante Poceirão-Pinheiro (aberta
ao tráfego em 1981) e a chamada “Linha de Vendas Novas/Concordância de Bombel”,
estabelecendo uma conexão directa Norte-Sul concêntrica e exterior à Área
Metropolitana de Lisboa. Seguindo uma lógica estritamente radial, ao Km 91, na
estação de Casa Branca, a Linha do Alentejo vê bifurcar-se a chamada “Linha de
Évora”, e ainda na estação de Beja (Km 154), inicia-se, na direcção do Sueste,
a antiga linha com essa designação, mais tarde conhecida como “Ramal de Moura”,
possuindo uma extensão de 58 Km.
A própria Linha
de Évora é um tronco de 101 Km de extensão, a partir do qual irradiam ainda
hoje, numa configuração arbórea, mais troços ramificados, o primeiro dos quais,
de 40 Km, ligando a estação de Évora (Km 117 a partir do Barreiro) à cidade de
Reguengos de Monsaraz. No Km 176, da Linha de Évora, localiza-se a estação da
cidade de Estremoz, ponto de junção com o Ramal de Portalegre-Estação, de 64 Km
de extensão, que constituiu o último elo construído entre as redes ferroviárias
do Centro e do Sul (1949), antes da entrada em serviço do tabuleiro inferior da
Ponte 25 de Abril, mais de meio século depois. Presentemente (2010), não possui
mais existência física, como caminho de ferro, o troço final de 26 Km da Linha
de Évora, articulando o eixo urbano Estremoz-Borba-Vila Viçosa, tendo o mesmo
sido convertido em sendeiro ciclável, à semelhança de outros casos mais
remotos, onde se encontram os antigos traçados Torre da Gadanha-Montemor-o-Novo
(17 Km) e Évora-Mora (60 Km).
A suspensão de
serviços ferroviários de 1990 afectou particularmente a linha de Beja a Moura,
assim como todas as relações nas direcções a Leste de Évora. E, desde essa data
até ao presente, têm permanecido inactivos os mencionados troços ferroviários,
subsistindo uma oferta esporádica de mercadorias até ao início 2009 entre Évora
e Estremoz, resumindo-se hoje o transporte de passageiros à camionagem
regional.
Por seu turno, e
já em plena era da existência da ligação das linhas da Península de Setúbal à
margem direita do Estuário do Tejo (2004), foi o muito degradado troço
Évora-Casa Branca (26 Km) completamente reabilitado, e reformulada em 2007 a
oferta de serviços Inter-Cidades entre Lisboa e a capital de Distrito do
Alentejo, em parceria com os serviços dirigidos a Beja. Actualmente (2010) estão
em fase de início as obras de electrificação (25 kV 50 Hz) e instalação de CTC,
de Bombel (Km 52) a Vendas Novas (Km 57) e Évora (Km 117), como fase
preparatória da via larga convencional (1668mm) que, a partir da sua
intersecção com a futura LAV Lisboa-Caia-Madrid em Évora-Norte, emparelhará com
esta, constituindo-se assim parte integrante do corredor logístico
Sines-Badajoz-Puertollano-Manzanares-Alcázar de San Juan-Madrid/Valencia,
operacional a partir do ano de 2013.
Afigura-se
necessário, precedendo a nossa análise, recordar as premissas sobre as quais
assentou a decisão que culminaria na suspensão maciça de serviços de 1990,
afectando as linhas de Moura, Reguengos, Évora-Estremoz-Vila Viçosa e
Estremoz-Portalegre-Estação, salientando o facto de que, volvidas duas décadas,
as mesmas continuam, de forma incólume, a ser invocadas, no sentido de
precludir qualquer tipo de discussão, centrada numa eventual reabilitação de
alguns destes troços, e retoma da exploração ferroviária. Afirmava-se então, em
sede do chamado “Plano de Reconversão e Modernização Ferroviária”, aprovado no
final dos anos 80 do séc.XX, que a “racionalização” da rede ferroviária
impunha-se num conjunto de casos, com incidência particular na rede ferroviária
do Alentejo, em virtude de um conjunto de factores, dos quais se destacavam:
a)
Estruturalmente a Região do Alentejo tendia a
desertificar-se, mercê de uma dinâmica demográfica regressiva, e como tal, inapropriada
em grande parte para possuir oferta de transporte ferroviário, à escala local;
b)
Os fluxos de passageiros entre as diversas localidades
tenderiam a – em consequência do ponto anterior – a tornar-se mais esparsos e
portanto menos significativos para o emprego do modo de transporte ferroviário;
c)
O modo autocarro substituiria “convenientemente” a
oferta ferroviária suprimida;
d)
A obsolescência da infra-estrutura ferroviária não era
compaginável com a presença do transporte ferroviário em múltiplos quadrantes
da Região do Alentejo.
Impõe-se,
naturalmente, validar ou não o conjunto de princípios anteriormente enunciados,
designadamente para os eixos ferroviários englobando as localidades
directamente afectadas pela ausência de transporte ferroviário ao longo da
última vintena de anos. Assim, ilustremos, desde já, como se comportou
retrospectivamente, o efectivo demográfico das localidades em causa.
3. A dinâmica demográfica da Região do Alentejo
3.1. Eixo
Évora-Reguengos de Monsaraz, correspondente ao Ramal de Reguengos
|
1981
|
1991
|
2001
|
2004
|
Èvora
|
51572
|
53754
|
56519
|
54780 (a)
|
Reguengos
|
11642
|
11401
|
11382
|
11460
|
AGREGADO
|
63214
|
65155
|
67901
|
66240
|
Fonte: INE –
Censos da População (a)-Ano de 2008
Analisando a
evolução demográfica do eixo urbano compreendido entre Évora e Reguengos de
Monsaraz, observa-se uma tendência irregular, consistindo em ciclos alternados
de crescimento e decréscimo ligeiro na capital de distrito, e uma quase
estagnação na cidade secundária. Mesmo assim, desde 1981, quando se encontrava
em plena actividade a linha ferroviária entre as duas cidades, e a quase
actualidade (2004/2008), há um ligeiro aumento do número agregado de
residentes, para o conjunto dos dois concelhos.
3.2. Eixo
Évora-Estremoz, correspondente a parte existente da Linha de Évora
|
1981
|
1991
|
2001
|
2004
|
Èvora
|
51572
|
53754
|
56519
|
54780 (a)
|
Estremoz
|
18073
|
15461
|
15672
|
15064
|
AGREGADO
|
69645
|
69215
|
72191
|
69844
|
Fonte: INE –
Censos da População (a)-Ano de 2008
É interessante
salientar o facto de que, apesar da acentuada quebra de população registada ao
longo de quase três décadas no concelho de Estremoz, o balanço final agregado
1981/2004 do eixo Estremoz-Évora apresenta-se, ainda assim favorável, não se
afigurando adequado qualificar a evolução demográfica como correspondente a uma
“desertificação”, quanto muito sendo possível enquadrá-la num ciclo de
estagnação.
3.3. Eixo
Estremoz-Borba-Vila Viçosa, correspondente à ciclopista existente
|
1981
|
1991
|
2001
|
2004
|
Estremoz
|
18073
|
15461
|
15672
|
15064
|
Borba
|
8546
|
9068
|
8871
|
8745
|
Vila Viçosa
|
8813
|
8254
|
7782
|
7545
|
AGREGADO
|
35432
|
32783
|
32325
|
31354
|
Fonte: INE –
Censos da População
No caso
específico do eixo urbano Estremoz-Borba-Vila Viçosa (“zona dos mármores”),
correspondente aos cerca de 26 Km de linha de Évora, encerrados, e actualmente
(2010) em curso de desmantelamento para a realização de uma ciclovia, há
efectivamente uma perda significativa de agregado populacional (-12% de 1981 a
2004), numa tendência quase contínua nos três concelhos, ao longo do período compreendido
entre o início da década de oitenta do séc.XX, e o tempo presente.
3.4. Eixo
Beja-Serpa-Moura, correspondente ao Ramal de Moura
|
1981
|
1991
|
2001
|
2004
|
Beja
|
38246
|
35827
|
35762
|
34387
|
Serpa
|
19772
|
17549
|
16590
|
16411
|
Moura
|
20748
|
17915
|
16723
|
16072
|
AGREGADO
|
78802
|
71291
|
69075
|
66870
|
Fonte: INE –
Censos da População
A diminuição de
população no eixo urbano estabelecido entre Beja e os centros regionais da
margem esquerda do Rio Guadiana parece ser ainda mais expressiva do que aquela
que se verificou entre 1981 e a actualidade, para o caso da “zona dos
mármores”. Para além da magnitude das perdas em população agregada (-16% de
1981 a 2004), o carácter regressivo do efectivo demográfico nunca deixou de se
fazer sentir, de forma contínua, em quaisquer destes concelhos, ao longo de
quase trinta anos, cuja primeira década contaria ainda com plena exploração
ferroviária, de passageiros e mercadorias, nos 58 Km de via férrea ligando Beja
a Moura.
3.5. Eixo
Estremoz-Sousel-Portalegre, correspondente ao Ramal de Portalegre-estação
|
1981
|
1991
|
2001
|
2004
|
Estremoz
|
18073
|
15461
|
15672
|
15064
|
Sousel
|
7259
|
6150
|
5780
|
5579
|
Portalegre
|
27313
|
26111
|
25980
|
24756
|
AGREGADO
|
52645
|
47722
|
47432
|
45399
|
Fonte: INE –
Censos da População
Numa perspectiva
muito simplificada, onde se excluíram os concelhos de Fronteira e Monforte,
através dos quais discorre uma das mais recentes linhas férreas de Portugal,
completada na sua totalidade apenas em 1949, o quadro de evolução demográfica,
sucessivamente regressiva ao longo dos anos censitários (e actualizações),
apresenta-nos uma variação de -14%, de 1981 a 2004.
3.6. Eixo Ponte
de Sôr-Portalegre-Elvas: Linha do Leste em funcionamento
|
1981
|
1991
|
2001
|
2004
|
Ponte de Sôr
|
18079
|
17802
|
18140
|
17593
|
Crato
|
5642
|
5064
|
4348
|
3995
|
Portalegre
|
27313
|
26111
|
25980
|
24756
|
Arronches
|
4307
|
3677
|
3389
|
3278
|
Elvas
|
24981
|
24474
|
23361
|
22691
|
AGREGADO
|
80322
|
77128
|
75218
|
72313
|
Fonte: INE –
Censos da População
Neste eixo
urbano, definido por parte da Linha do Leste, integrando a rede ferroviária
activa, registou-se, de 1981 até à actualidade, uma perda de cerca de 10% no
efectivo demográfico agregado dos concelhos atravessados.
3.7. Observações
gerais
Os dados
demográficos, reportados de forma retrospectiva aos concelhos constituintes dos
eixos servidos pelo caminho de ferro do Alentejo, apresentam, na maior parte
dos casos, reduções efectivas do seu efectivo demográfico, ao longo das últimas
três décadas, todavia em expressões diversas e nem sempre se evidenciando
tendências contínuas de perda populacional. Validado, em parte, o primeiro dos
princípios mencionados em 2. a), tendo presidido a uma das justificações mais
vulgarmente invocadas para sustentar a desactivação de serviços ferroviários no
Alentejo, a partir dos anos 90 do séc.XX, ou desencorajar qualquer iniciativa
revertendo a situação, afigura-se, de seguida, imperioso verificar a existência
– ou não – de correlação com os fluxos de passageiros regulares
inter-concelhios, nos eixos em análise.
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