domingo, 14 de junho de 2015



DESMISTIFICAR A "INVIABILIDADE" DO CAMINHO DE FERRO RURAL

Apresenta-se, a partir de agora, o trabalho "Subsídios para um novo Caminho de Ferro na Região do Alentejo", publicado em duas partes na "Transportes em Revista" em 2010, da autoria de Manuel Margarido Tão. Nessa época, mantinham-se ainda em plena actividade, os serviços de passageiros na Linha do Leste e Ramal de Cáceres, ainda que com um serviço quasi-esquelético, tornado deliberadamente repulsivo pela Tutela da operadora estatal, a qual, desde há longo tempo havia suprimido já as relações directas com Lisboa. No final de 2012, já com o actual governo anti-caminho de ferro, desapareciam, com a supressão dos serviços de passageiros Entroncamento-Badajoz (ininterruptos desde 1863), todo e quaisquer comboios de passageiros no Distrito de Portalegre (o Ramal de Cáceres perdera os seus últimos serviços meses antes). O trabalho demonstra, apoiando-se em estatísticas oficiais, o quão falaciosa é a argumentação da pretensa "inviabilidade" de serviços ferroviários devido a "factores demográficos regressivos", e desmascara a "vantagem" da substituição de serviços ferroviários com autocarros, salientando a incapacidade de os últimos se manterem por muito mais tempo, finda a exploração ferroviária. A liquidação dos serviços ferroviários rurais é apenas o fim do transporte público, a destruição do carácter inclusivo da mobilidade, e a demissão do Estado da promoção dos territórios e das suas comunidades. A segunda parte é fundamentalmente, o "benchmarking" de boas práticas do caminho de ferro rural Europeu, quer com envolvimento do Estado, quer com privados, associados a Comunidades locais. As tecnologias do material circulante regional moderno (deliberadamente ocultadas em Portugal), são igualmente contempladas na segunda parte do trabalho.



SUBSÍDIOS PARA UM NOVO CAMINHO DE FERRO
NA REGIÃO DO ALENTEJO (1A)


  1. Introdução

Volvida uma vintena de anos sobre a data de 1 de Janeiro de 1990, quando foram encerradas múltiplas linhas no Alentejo, ou se rarefizeram os serviços em outras, um conjunto de novas perspectivas para o transporte ferroviário na Região parecem emergir, com a materialização de realidades estruturantes, como o corredor de Alta Velocidade Lisboa-Évora-Caia-Madrid, e o Aeroporto de Beja.

No primeiro dos casos, uma linha férrea dupla em bitola “standard” Europeia (1435mm), dedicada a passageiros, mas possuindo em parte do seu traçado uma via extra de 1668mm, assignada aos movimentos regionais e logísticos, terá dois pontos de acesso e egresso comuns à rede ferroviária convencional existente: Évora-Norte e Caia, terminais novos, ligados respectivamente às Linhas de Évora (Km 124) e Leste (Km 266). No segundo dos casos, a proximidade da Linha do Alentejo ao novo Aeroporto de Beja, designadamente na zona de S.Matias (Km 147), deixa antever, num terreno completamente desimpedido e sem quaisquer obstáculos orográficos, a construção de uma “variante de passagem”, permitindo o estabelecimento de um “interface” de articulação funcional entre os modos aéreo e ferroviário, projectando o “hinterland” do novo terminal para quadrantes tão distantes quanto a Área Metropolitana de Lisboa, a Extremadura Espanhola ou os litorais do Alentejo e Algarve.

É neste contexto de desenvolvimento a médio prazo das acessibilidades no Alentejo que se afigura imperioso abordar a problemática da valência colectora e distributiva da rede ferroviária convencional, com particular incidência num conjunto de troços de linha ainda existentes, todavia desactivados desde 1990. Até que ponto, o enquadramento institucional, de “livre-acesso” à infra-estrutura ferroviária e contratualização de serviços públicos de transporte, combinado com as novas realidades de um terminal de Évora-Norte ou Caia, respectivamente a 35 e 50 minutos de Lisboa-Oriente, projecta (ou não) para a actualidade, um papel renovado a atribuir a linhas férreas presentemente desactivadas, mas potencialmente capazes de transmitir os ganhos temporais da Alta Velocidade a um grupo de cidades como Estremoz, Reguengos de Monsaraz ou Portalegre, colocando-os numa isócrona inferior a 90 minutos, centrada na capital?

No presente trabalho, propomo-nos analisar o potencial de parte da rede ferroviária convencional do Alentejo à luz dos empreendimentos de infra-estruturas de transporte de carácter estruturante, que serão implantadas na Região até ao fim da presente década.


  1. O transporte ferroviário no Alentejo, de 1990 à actualidade.

A rede ferroviária convencional na Região do Alentejo (Central e Meridional) consiste fundamentalmente num grande corredor de via única, compreendido entre Pinhal Novo (Km 16 a partir do Barreiro, ou Km 38 a partir de Lisboa-Oriente), e Funcheira (Km 218), designado actualmente por “Linha do Alentejo” e suplementando o itinerário Lisboa-Algarve, anteriormente conhecido como “Linha do Sado”. A “Linha do Alentejo”, por seu turno, conta com várias ramificações, das quais a mais importante é, sem dúvida, a Variante Poceirão-Pinheiro (aberta ao tráfego em 1981) e a chamada “Linha de Vendas Novas/Concordância de Bombel”, estabelecendo uma conexão directa Norte-Sul concêntrica e exterior à Área Metropolitana de Lisboa. Seguindo uma lógica estritamente radial, ao Km 91, na estação de Casa Branca, a Linha do Alentejo vê bifurcar-se a chamada “Linha de Évora”, e ainda na estação de Beja (Km 154), inicia-se, na direcção do Sueste, a antiga linha com essa designação, mais tarde conhecida como “Ramal de Moura”, possuindo uma extensão de 58 Km.

A própria Linha de Évora é um tronco de 101 Km de extensão, a partir do qual irradiam ainda hoje, numa configuração arbórea, mais troços ramificados, o primeiro dos quais, de 40 Km, ligando a estação de Évora (Km 117 a partir do Barreiro) à cidade de Reguengos de Monsaraz. No Km 176, da Linha de Évora, localiza-se a estação da cidade de Estremoz, ponto de junção com o Ramal de Portalegre-Estação, de 64 Km de extensão, que constituiu o último elo construído entre as redes ferroviárias do Centro e do Sul (1949), antes da entrada em serviço do tabuleiro inferior da Ponte 25 de Abril, mais de meio século depois. Presentemente (2010), não possui mais existência física, como caminho de ferro, o troço final de 26 Km da Linha de Évora, articulando o eixo urbano Estremoz-Borba-Vila Viçosa, tendo o mesmo sido convertido em sendeiro ciclável, à semelhança de outros casos mais remotos, onde se encontram os antigos traçados Torre da Gadanha-Montemor-o-Novo (17 Km) e Évora-Mora (60 Km).

A suspensão de serviços ferroviários de 1990 afectou particularmente a linha de Beja a Moura, assim como todas as relações nas direcções a Leste de Évora. E, desde essa data até ao presente, têm permanecido inactivos os mencionados troços ferroviários, subsistindo uma oferta esporádica de mercadorias até ao início 2009 entre Évora e Estremoz, resumindo-se hoje o transporte de passageiros à camionagem regional.

Por seu turno, e já em plena era da existência da ligação das linhas da Península de Setúbal à margem direita do Estuário do Tejo (2004), foi o muito degradado troço Évora-Casa Branca (26 Km) completamente reabilitado, e reformulada em 2007 a oferta de serviços Inter-Cidades entre Lisboa e a capital de Distrito do Alentejo, em parceria com os serviços dirigidos a Beja. Actualmente (2010) estão em fase de início as obras de electrificação (25 kV 50 Hz) e instalação de CTC, de Bombel (Km 52) a Vendas Novas (Km 57) e Évora (Km 117), como fase preparatória da via larga convencional (1668mm) que, a partir da sua intersecção com a futura LAV Lisboa-Caia-Madrid em Évora-Norte, emparelhará com esta, constituindo-se assim parte integrante do corredor logístico Sines-Badajoz-Puertollano-Manzanares-Alcázar de San Juan-Madrid/Valencia, operacional a partir do ano de 2013.

Afigura-se necessário, precedendo a nossa análise, recordar as premissas sobre as quais assentou a decisão que culminaria na suspensão maciça de serviços de 1990, afectando as linhas de Moura, Reguengos, Évora-Estremoz-Vila Viçosa e Estremoz-Portalegre-Estação, salientando o facto de que, volvidas duas décadas, as mesmas continuam, de forma incólume, a ser invocadas, no sentido de precludir qualquer tipo de discussão, centrada numa eventual reabilitação de alguns destes troços, e retoma da exploração ferroviária. Afirmava-se então, em sede do chamado “Plano de Reconversão e Modernização Ferroviária”, aprovado no final dos anos 80 do séc.XX, que a “racionalização” da rede ferroviária impunha-se num conjunto de casos, com incidência particular na rede ferroviária do Alentejo, em virtude de um conjunto de factores, dos quais se destacavam:

a)      Estruturalmente a Região do Alentejo tendia a desertificar-se, mercê de uma dinâmica demográfica regressiva, e como tal, inapropriada em grande parte para possuir oferta de transporte ferroviário, à escala local;
b)      Os fluxos de passageiros entre as diversas localidades tenderiam a – em consequência do ponto anterior – a tornar-se mais esparsos e portanto menos significativos para o emprego do modo de transporte ferroviário;
c)      O modo autocarro substituiria “convenientemente” a oferta ferroviária suprimida;
d)     A obsolescência da infra-estrutura ferroviária não era compaginável com a presença do transporte ferroviário em múltiplos quadrantes da Região do Alentejo.

Impõe-se, naturalmente, validar ou não o conjunto de princípios anteriormente enunciados, designadamente para os eixos ferroviários englobando as localidades directamente afectadas pela ausência de transporte ferroviário ao longo da última vintena de anos. Assim, ilustremos, desde já, como se comportou retrospectivamente, o efectivo demográfico das localidades em causa.



3. A dinâmica demográfica da Região do Alentejo


3.1.  Eixo Évora-Reguengos de Monsaraz, correspondente ao Ramal de Reguengos


1981
1991
2001
2004
Èvora
51572
53754
56519
54780 (a)
Reguengos
11642
11401
11382
11460
AGREGADO
63214
65155
67901
66240
Fonte: INE – Censos da População (a)-Ano de 2008

Analisando a evolução demográfica do eixo urbano compreendido entre Évora e Reguengos de Monsaraz, observa-se uma tendência irregular, consistindo em ciclos alternados de crescimento e decréscimo ligeiro na capital de distrito, e uma quase estagnação na cidade secundária. Mesmo assim, desde 1981, quando se encontrava em plena actividade a linha ferroviária entre as duas cidades, e a quase actualidade (2004/2008), há um ligeiro aumento do número agregado de residentes, para o conjunto dos dois concelhos.

3.2.  Eixo Évora-Estremoz, correspondente a parte existente da Linha de Évora


1981
1991
2001
2004
Èvora
51572
53754
56519
54780 (a)
Estremoz
18073
15461
15672
15064
AGREGADO
69645
69215
72191
69844
Fonte: INE – Censos da População (a)-Ano de 2008

É interessante salientar o facto de que, apesar da acentuada quebra de população registada ao longo de quase três décadas no concelho de Estremoz, o balanço final agregado 1981/2004 do eixo Estremoz-Évora apresenta-se, ainda assim favorável, não se afigurando adequado qualificar a evolução demográfica como correspondente a uma “desertificação”, quanto muito sendo possível enquadrá-la num ciclo de estagnação.


3.3. Eixo Estremoz-Borba-Vila Viçosa, correspondente à ciclopista existente


1981
1991
2001
2004
Estremoz
18073
15461
15672
15064
Borba
8546
9068
8871
8745
Vila Viçosa
8813
8254
7782
7545
AGREGADO
35432
32783
32325
31354
Fonte: INE – Censos da População

No caso específico do eixo urbano Estremoz-Borba-Vila Viçosa (“zona dos mármores”), correspondente aos cerca de 26 Km de linha de Évora, encerrados, e actualmente (2010) em curso de desmantelamento para a realização de uma ciclovia, há efectivamente uma perda significativa de agregado populacional (-12% de 1981 a 2004), numa tendência quase contínua nos três concelhos, ao longo do período compreendido entre o início da década de oitenta do séc.XX, e o tempo presente.


3.4. Eixo Beja-Serpa-Moura, correspondente ao Ramal de Moura


1981
1991
2001
2004
Beja
38246
35827
35762
34387
Serpa
19772
17549
16590
16411
Moura
20748
17915
16723
16072
AGREGADO
78802
71291
69075
66870
Fonte: INE – Censos da População

A diminuição de população no eixo urbano estabelecido entre Beja e os centros regionais da margem esquerda do Rio Guadiana parece ser ainda mais expressiva do que aquela que se verificou entre 1981 e a actualidade, para o caso da “zona dos mármores”. Para além da magnitude das perdas em população agregada (-16% de 1981 a 2004), o carácter regressivo do efectivo demográfico nunca deixou de se fazer sentir, de forma contínua, em quaisquer destes concelhos, ao longo de quase trinta anos, cuja primeira década contaria ainda com plena exploração ferroviária, de passageiros e mercadorias, nos 58 Km de via férrea ligando Beja a Moura.
  

3.5. Eixo Estremoz-Sousel-Portalegre, correspondente ao Ramal de Portalegre-estação


1981
1991
2001
2004
Estremoz
18073
15461
15672
15064
Sousel
7259
6150
5780
5579
Portalegre
27313
26111
25980
24756
AGREGADO
52645
47722
47432
45399
Fonte: INE – Censos da População

Numa perspectiva muito simplificada, onde se excluíram os concelhos de Fronteira e Monforte, através dos quais discorre uma das mais recentes linhas férreas de Portugal, completada na sua totalidade apenas em 1949, o quadro de evolução demográfica, sucessivamente regressiva ao longo dos anos censitários (e actualizações), apresenta-nos uma variação de -14%, de 1981 a 2004.


3.6. Eixo Ponte de Sôr-Portalegre-Elvas: Linha do Leste em funcionamento


1981
1991
2001
2004
Ponte de Sôr
18079
17802
18140
17593
Crato
5642
5064
4348
3995
Portalegre
27313
26111
25980
24756
Arronches
4307
3677
3389
3278
Elvas
24981
24474
23361
22691
AGREGADO
80322
77128
75218
72313
Fonte: INE – Censos da População

Neste eixo urbano, definido por parte da Linha do Leste, integrando a rede ferroviária activa, registou-se, de 1981 até à actualidade, uma perda de cerca de 10% no efectivo demográfico agregado dos concelhos atravessados.


3.7. Observações gerais

Os dados demográficos, reportados de forma retrospectiva aos concelhos constituintes dos eixos servidos pelo caminho de ferro do Alentejo, apresentam, na maior parte dos casos, reduções efectivas do seu efectivo demográfico, ao longo das últimas três décadas, todavia em expressões diversas e nem sempre se evidenciando tendências contínuas de perda populacional. Validado, em parte, o primeiro dos princípios mencionados em 2. a), tendo presidido a uma das justificações mais vulgarmente invocadas para sustentar a desactivação de serviços ferroviários no Alentejo, a partir dos anos 90 do séc.XX, ou desencorajar qualquer iniciativa revertendo a situação, afigura-se, de seguida, imperioso verificar a existência – ou não – de correlação com os fluxos de passageiros regulares inter-concelhios, nos eixos em análise.

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